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‘Pastor com cheiro de ovelha’, Papa Francisco eterniza legado de reforma e simplicidade na Igreja Católica

Em 12 anos de pontificado, Francisco promoveu reformas na estrutura, no estilo e na visão de Igreja, deixando mudanças que dificilmente serão revertidas Papa Francisco no Teatro Municipal do Rio
Divulgação
Francisco foi um papa eleito para reformar a Igreja e há elementos de seu legado que dificilmente serão revertidos por um sucessor imediato. Algumas das principais mudanças realizadas em seus quase 12 anos de pontificado foram de tipo estrutural e outras de conteúdo, no ensinamento ou no estilo da Igreja. Entre elas:
Maior simplicidade no papado;
Nomeações de bispos e cardeais com visão de mundo parecida à sua;
Normas que tornam a Cúria Romana mais aberta e menos clerical;
Mais autoridade e visibilidade às mulheres, postura mais acolhedora aos homossexuais e transgêneros;
A “sinodalidade” como estilo de Igreja mais consultivo e participativo;
Ensinamentos e gestos sobre pena de morte, meio ambiente e abusos.
Simplicidade no papado
Francisco quis reforçar a identidade original do papado: o papa é um sacerdote, um pastor, o sucessor do apóstolo Pedro, e não apenas um monarca. A escolha do nome “Francisco”, em referência ao santo pobre de Assis, era já um sinal.
Sua decisão de morar na Casa Santa Marta, uma hospedaria no Vaticano, em vez do suntuoso Palácio Apostólico, foi o primeiro passo. Algo parecido com a decisão do Papa Paulo VI, que, após ser entronado, deixou de usar a chamada “tiara papal”, uma coroa típica dos pontífices, e passou a aparecer publicamente somente com a “mitra”, um chapéu pontiagudo usado por todos os bispos durante as celebrações litúrgicas.
Francisco andou em carros populares, com a janela aberta e no banco da frente, e sempre preferiu vestes pouco chamativas. Raramente trocava seus óculos e sapatos. Quando começou a ter dificuldades para caminhar, normalizou o uso da cadeira de rodas.
Ele gostava de estar perto do povo e de tocá-lo com as próprias mãos. Importou para Roma um estilo de padre conhecido na América Latina. Desde Buenos Aires, o cardeal-arcebispo Jorge Mario Bergoglio era visto tomando o metrô, como qualquer cidadão. À época, celebrava a missa diária em uma pequena capela, aberta ao público, para estar com o povo e a “Virgem de Luján”. Nas favelas de Buenos Aires, as “villas”, encontrava a gente mais simples e parava para tomar mate.
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Nomeações duradouras
Papa Francisco quis que esse estilo de pastor “com cheiro de ovelha”, como dizia, fosse o modelo padrão. Nomeou para cargos de liderança bispos que, em sua visão, tinham uma linha de atuação mais “pastoral”, humilde, atento às devoções populares e pouco apegado a bens materiais.
Ele nem sempre acertou, mas muitas dioceses importantes hoje são governadas por bispos que vieram das bases, alguns bastante jovens, e não só das universidades ou dos escritórios. São líderes que, como ele, defendem uma “Igreja saída”, convidativa e aberta a todos. Como disse Francisco na exortação apostólica Evangelii gaudium, “a Igreja ‘em saída’ é a comunidade de discípulos missionários que tomam a iniciativa, que se envolvem, que acompanham, que dão fruto e que celebram”.
Ele nomeou novos cardeais em partes do mundo que antes nunca haviam tido um, como Cabo Verde, Tonga, Myanmar, Sudão do Sul, Mongólia, entre outros, e que elegerão o novo papa. Muitos têm menos de 70 anos e tendem a permanecer ativos por muito tempo. Seu sucessor será legitimado por um grupo muito mais multicultural e internacional. A capilaridade de suas nomeações reorganizou as estruturas de governo da Igreja.
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Nova Constituição da Cúria Romana
Antes do conclave que elegeu Bergoglio, os cardeais sabiam que era preciso reformar a Cúria Romana, a sede do governo central da Igreja no Vaticano. Atendendo à demanda, Francisco criou o Conselho dos Cardeais, o “C-9”, formado por nove deles, com o dever de propor uma reestruturação.
O resultado de dez anos de trabalho foi uma nova Constituição Apostólica, a Praedicate Evangelium (“Proclamem o Evangelho”, em português), promulgada em 2022. Com ela, o Vaticano adotou postura mais receptiva, atenta a ouvir os testemunhos das igrejas locais do mundo todo, e com o dever de conectá-las entre si. É uma administração menos centralizadora e mais distributiva
A nova constituição permite, por exemplo, que qualquer pessoa batizada possa ser um colaborador direto do Papa – e não só os padres e bispos – inclusive em cargos de primeiro escalão no Vaticano. Em outras palavras, pode representar e auxiliar o Papa em sua missão, em qualquer nível de gestão e governo.
“Todo o cristão, em virtude do Batismo, é um discípulo-missionário na medida em que se encontrou com o amor de Deus em Cristo Jesus. Não se pode deixar de ter isso em conta na atualização da Cúria, pelo que a sua reforma deve prever o envolvimento de leigas e leigos, mesmo em funções de governo e de responsabilidade”, diz o documento.
O papel das mulheres
Francisco foi o Papa que mais avançou na ideia de dar às mulheres maior visibilidade e autoridade na Igreja. Nomeou uma dezena para cargos de primeiro e segundo nível no Vaticano, duas delas sucedendo cardeais – as religiosas italianas Simona Brambilla e Raffaella Petrini.
Do ponto de vista da fé, ele dizia: “A Igreja é mulher, as mulheres são imagem e figura da Igreja mãe, expressam de modo especial a colaboração. Às reclamações feministas, respondo que Maria é muito mais importante que os apóstolos.” Ele também criou a festa litúrgica de Santa Maria Madalena, discípula de Cristo, colocando-a no mesmo nível dos doze apóstolos.
O Papa Francisco temia, porém, a “clericalização” da mulher. Por isso, ele não priorizou medidas mais drásticas, como a possibilidade de ordenar as mulheres para o diaconado – os diáconos têm a função do serviço à caridade e, nas celebrações, cuidam da Palavra e do altar. Permitiu, isso sim, que as mulheres e meninas estejam entre os “acólitos” – no Brasil conhecidos como “coroinhas” ou “cerimoniários” – e que participem da celebração do lava-pés, na Quinta-feira Santa, como discípulas de Cristo.
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Sinodalidade como estilo da Igreja
A partir de Francisco, o Sínodo dos Bispos jamais será o mesmo. O Sínodo, criado pelo Papa Paulo VI após o Concílio Vaticano II, é um ambiente de encontro dos bispos de todo o mundo com o bispo de Roma, o Papa. Reúnem-se para analisar as necessidades da sociedade e da Igreja, com temas específicos.
Mas, na prática, por décadas o Sínodo não funcionou de maneira autêntica. As assembleias eram engessadas por discursos longos, pouco interativos. Os documentos finais muitas vezes já estavam rascunhados antes mesmo da reunião ocorrer. Com Francisco, isso mudou. Para ele, a sinodalidade é o único “estilo de Igreja” possível em nossos tempos.
“O mundo em que vivemos, e que somos chamados a amar e servir mesmo em suas contradições, exige que a Igreja fortaleça as sinergias em todas as áreas de sua missão”, dizia Francisco. “O que o Senhor nos pede, em certo sentido, já está todo contido na palavra ‘sínodo’. Caminhar juntos – Leigos, Pastores, Bispo de Roma – é um conceito fácil de expressar em palavras, mas não tão fácil de colocar em prática.”
Não se trata de um mero instrumento de pesquisa, nem de transformar a Igreja num “parlamento”, ele insistia. O Sínodo é um modo de viver, de ouvir-se a si mesmos, uns aos outros e, juntos, a Deus, continuamente. É invocar a ação do Espírito Santo na Igreja fundada por Jesus Cristo – nisso ele acreditava. O processo sinodal faz essa dinâmica viva. Na visão do Papa Francisco, todas as pessoas têm um lugar na Igreja. Ele reorganizou o Sínodo, que, embora ainda seja “dos Bispos”, agora envolve todo tipo de gente, de dentro e de fora do catolicismo.
O Sínodo sobre a Sinodalidade, que convocou entre 2021 e 2024, foi um convite aos 1,4 bilhão de católicos a pensar na Igreja: como viver melhor a “comunhão, a participação e a missão” a que ela se propõe? Ele colocou os participantes em linha horizontal, às vezes em torno de mesas redondas, e não na vertical, em linha hierárquica. Para Francisco, todos mereceriam ter voz.
Pena de morte e meio ambiente
É impossível definir o Papa Francisco como “progressista” ou “conservador”, pois a única mudança que ele fez na doutrina da Igreja Católica foi uma atualização no seu posicionamento oficial sobre a pena de morte. Desde João Paulo II e Bento XVI, a Igreja era, em geral, contrária à pena capital, mas havia situações abertas à interpretação.
Em 2018, Francisco alterou o Catecismo, documento que resume os ensinamentos da Igreja, para dizer que, a partir de então, “a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa, e [a Igreja] se empenha com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo”. Isso é, provavelmente, definitivo.
Fora isso, Francisco adotou postura de diálogo com o mundo, com um olhar atento para fora da Igreja. Inseriu no ensinamento da Igreja – o magistério – elementos importantes.
Escreveu a primeira encíclica, documento mais importante de um Papa, sobre a questão ambiental, a Laudato si’ (Louvado seja) e afirmou que os problemas sociais e os problemas ambientais têm a mesma raiz, um sistema econômico excludente, individualista e desumano.
“A violência, que está no coração humano ferido pelo pecado, vislumbra-se nos sintomas de doença que notamos no solo, na água, no ar e nos seres vivos. Por isso, entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que «geme e sofre as dores do parto» (Rm 8, 22)”, escreveu.
O Papa se tornou uma referência para os encontros globais sobre o clima (COP). Durante a pandemia da Covid-19, na encíclica Fratelli tutti, lembrou ao mundo que “somos todos irmãos” e “estamos todos no mesmo barco”.
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Sexualidade e gênero
Francisco não mexeu em normas de moral sexual nem revisou a concepção da Igreja sobre questões de gênero. Mas adotou abordagem mais acolhedora e menos normativa, insistindo que na Igreja há lugar para “todos, todos, todos”.
“Você é chamado por Deus pelo nome. Você, você, você, todos nós que estamos aqui, eu, todos nós fomos chamados pelo nosso nome. Não fomos chamados automaticamente, fomos chamados pelo nome. Vamos pensar nisso: Jesus me chamou pelo meu nome”, disse ele na Jornada Mundial da Juventude de Lisboa, em 2023.
“Fomos chamados, por quê? Porque somos amados. É lindo! Aos olhos de Deus somos filhos preciosos, a quem Ele chama todos os dias para abraçar e encorajar; para fazer de cada um de nós uma obra-prima única e original; cada um de nós é único, é original, e a beleza de tudo isso não podemos vislumbrar”, refletiu.
Chamou a Igreja de um “hospital de campanha”: é preciso cuidar das feridas do mundo, e não abordar as pessoas com questionamentos ou imposição de regras. Foi um Papa inimigo da rigidez.
Ele se colocou à disposição para encontrar pessoas homossexuais e transgênero, e as ouviu. O passo mais concreto e formal, nesse sentido, foi quando permitiu que todos pudessem receber bênçãos dos padres, inclusive casais em situações consideradas “irregulares”. Essas situações incluem homoafetivos, divorciados em segunda união ou pessoas em união estável, sem se casar na Igreja, por exemplo.
As bênçãos são para todos, mas devem ser feitas em privado e discretamente, e não confundidas com um matrimônio, que é um sacramento para um casal formado por homem e mulher – observou a declaração Fiducia supplicans (Confiança suplicante), do Dicastério para a Doutrina da Fé. Ainda assim, “Deus nunca rejeita ninguém que se aproxima dele!”, diz o documento, aprovado pelo Papa.
“Em última análise, a bênção oferece às pessoas um meio de aumentar sua confiança em Deus. Pedir uma bênção expressa e nutre a abertura à transcendência, à piedade e à proximidade de Deus em mil circunstâncias concretas da vida, e isso não é pouca coisa no mundo em que vivemos. É uma semente do Espírito Santo que precisa ser nutrida, não impedida.”
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Abusos na Igreja
Em 12 anos de pontificado, Francisco também teve que lidar com as feridas abertas das vítimas de abusos sexuais, morais e de poder, ocorridos dentro da Igreja ao longo das últimas quatro ou cinco décadas. Com Bento XVI, a Igreja começou a dar os primeiros passos para expor o problema e dar resolução, a ouvir e encontrar as vítimas. Mas foi Francisco quem avançou mais em medidas estruturais.
Ele foi o Papa que permitiu à Igreja a tratar abertamente do problema e deixou claro que a proteção dos menores e pessoas vulneráveis é uma responsabilidade de todos. Entre 2018 e 2023, realizou uma série de reformas normativas e organizacionais para que os abusos sejam prevenidos, punidos e jamais acobertados. Francisco falava em “tolerância zero” com abusadores.
O principal documento sobre o tema é o decreto Vox estis lux mundi (Vós sois a luz do mundo), que estabelece normas processuais claras e garante que, além dos abusadores, bispos e superiores religiosos respondam por omissão ou cumplicidade.
“Os crimes de abuso sexual ofendem Nosso Senhor, causam danos físicos, psicológicos e espirituais às vítimas e lesam a comunidade dos fiéis”, diz o documento. “Para que tais fenômenos, em todas as suas formas, não aconteçam mais, é necessária uma conversão contínua e profunda dos corações, atestada por ações concretas e eficazes que envolvam todos os membros da Igreja”, acrescenta.
Sobre isso, dois fatos foram emblemáticos no seu pontificado. O primeiro, em 2018, quando percebeu que a Igreja do Chile estava dominada por clérigos que não levavam a sério o problema, convocou os bispos chilenos a Roma e pediu a renúncia de todos – um gesto simbólico, mas, de fato, substituiu alguns. Isso depois que ele mesmo teve que pedir desculpas publicamente após, em visita ao Chile no mesmo ano, ter defendido a presunção de inocência de um bispo acusado por vítimas de acobertar abusos.
O segundo momento, quando convocou no Vaticano, em 2019, um congresso sobre o problema dos abusos. O encontro reuniu bispos de diferentes partes do mundo, entre eles os da Cúria Romana, com o objetivo de aumentar a conscientização sobre o problema e incentivá-los a adotar medidas. Ainda assim, Francisco continuou sendo demandado pelas organizações de vítimas para que medidas mais duras fossem tomadas.
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Eleito para reformar a Igreja
Francisco foi um Papa reformador. No conclave de 2013, após a renúncia de Bento XVI, estava claro entre os cardeais eleitores que era preciso escolher alguém dinâmico e sintonizado com as necessidades do mundo de hoje.
Muitos foram convencidos por um discurso de Jorge Mario Bergoglio, então arcebispo de Buenos Aires, realizado dias antes do conclave. Na ocasião, ele defendeu a noção de uma “Igreja em saída”, que não fica fechada nos templos mas que sai ao encontro dos que estão fora. Ele acreditava que era preciso enxergar o “Cristo encarnado” em cada pessoa, especialmente nas que mais sofrem. Essa foi a visão de mundo que orientou toda a sua reforma.
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