Pesquisadora inglesa Laura Bates, autora de projetos sobre violência de gênero, compila relatos de abusos e assédios e alerta para o avanço do discurso misógino entre jovens homens, impulsionado por redes sociais e inteligência artificial. Nos últimos anos, Laura Bates tornou-se uma das principais vozes do feminismo no Reino Unido
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A escritora e pesquisadora inglesa Laura Bates afirma que testemunhamos hoje um movimento de radicalização em massa de meninos e adolescentes, estimulado pelos algoritmos da internet.
“Isso é algo que nunca tínhamos visto. Ao longo de décadas, a parcela da opinião pública que lamentavelmente tem noções do tipo ‘lugar de mulher é na cozinha’ sempre se concentrava entre os mais velhos”, observa ela.
“Temos a ideia de que os jovens são mais progressistas e liberais, com um alto grau de tolerância social e mais respeito pelas mulheres.”
“Mas o que vemos agora, pela primeira vez na História e em diferentes estudos, é que as atitudes mais misóginas, antiquadas e obsoletas em relação às mulheres e às meninas se tornaram mais comuns entre jovens do sexo masculino”, complementa Bates.
Nos últimos anos, a escritora tornou-se uma das principais vozes do feminismo no Reino Unido e no mundo a partir do lançamento do projeto Everyday Sexism (“Sexismo Diário”, em tradução livre), que compila histórias de mulheres que sofreram abusos e assédios.
Ela também lançou uma série de livros, como Fix the System, Not the Women (“Conserte o Sistema, Não as Mulheres); Men Who Hate Women (“Homens que Odeiam as Mulheres”); Girl Up (expressão que remete a algo como “empodere-se como garota”); MisogyNation (“Nação Misógina”); e The New Age of Sexism (“A Nova Era do Sexismo”).
Em entrevista ao podcast Radical with Amol Rajan, da BBC Radio 4, ela apresenta evidências e argumentos de como a inteligência artificial (IA) pode agravar ainda mais esse cenário — e quais são os caminhos para proteger as pessoas.
“Precisamos soar o alarme e dizer que não estamos falando aqui de um risco futuro e distópico em que robôs dominarão o mundo. Isso está acontecendo agora mesmo e é a vida de meninas e mulheres que está em jogo”, alerta ela.
“Há um risco genuíno de que as novas tecnologias catapultem meninos e homens a uma nova era brilhante — e arrastem meninas e mulheres de volta à idade das trevas.”
Atenção: a reportagem traz detalhes sobre assédio, abuso e suicídio que podem ser sensíveis para algumas pessoas.
‘Semana péssima’
Bates conta que não sabia exatamente o que era feminismo até chegar aos 20 anos — e ela só mergulhou de cabeça nesse assunto após uma semana particularmente pesada.
“Certo dia, eu estava voltando para minha casa no norte de Londres quando um homem começou a me seguir. Ele fez propostas de cunho sexual de maneira explícita e disse que não aceitaria uma recusa. Me senti muito insegura”, lembra ela.
“Algumas noites depois, eu estava num ônibus conversando com a minha mãe pelo celular quando um homem sentado ao meu lado colocou as mãos no meio das minhas pernas. Eu fiquei atordoada. As pessoas ao redor viram tudo, mas ninguém fez nada. Apenas desviaram o olhar.
“Após alguns dias, estava andando numa rua em plena luz do dia quando passei por um grupo de homens que trabalhava na traseira de um caminhão. Eles começaram a discutir abertamente, em voz alta, o que fariam com certas partes do meu corpo”, diz Bates.
Ao final dessas três experiências, ela percebeu que precisava fazer algo.
“E eu só cheguei a essa conclusão porque os três eventos aconteceram bem próximos uns dos outros. Naquele momento, eu já havia sofrido uma série de outros abusos e assédios na universidade ou nos trabalhos de meio período que tive.”
“Mas, se a gente não parar para pensar e debater sobre esse assunto, as coisas nunca vão mudar.”
A escritora destaca as pequenas precauções que as mulheres precisam tomar todos os dias para evitar riscos ainda maiores — como, por exemplo, atravessar a rua ao se deparar com um grupo de homens, usar tênis caso seja necessário correr de alguma ameaça ou não usar o fone de ouvido na rua para ser capaz de escutar caso alguém fale algo que soe perigoso.
“De um milhão de maneiras diferentes, nós mulheres aprendemos desde cedo que não estamos seguras”, constata ela.
Diante desse cenário, Bates considera radicais as iniciativas que dão voz às mulheres e denunciam abertamente casos de assédios e abusos, como o movimento MeToo e o Projeto Everyday Sexism, encampado por ela própria.
“Eu não tinha ideia de como isso poderia ser tão comovente e catártico, e ter um grande impacto em meninas e mulheres que tiveram suas histórias ouvidas, para que soubessem que elas não estão sozinhas.”
“Nós somos condicionadas a permanecer em silêncio desde muito jovens. Sempre aparecem aquelas alegações de que estamos sendo bobas, exagerando na reação ou fazendo muito barulho por nada. Ouvimos perguntas como: ‘O que você estava vestindo quando ele fez isso?’, ‘Mas, também, você bebeu, né?’ ou ‘Será que você não deu alguma sugestão indevida a ele?’.”
Bates diz que mulheres precisam se preocupar o tempo todo sobre o risco que correm
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Um problema que só piora
Bates avalia que, apesar de conquistas recentes, como as mudanças em leis que deram mais segurança às mulheres de alguns países, a situação está bem longe do ideal.
“Sabemos que mais da metade de todas as mulheres e dois terços das adolescentes já sofreram algum tipo de assédio sexual”, estima ela.
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“E, por mais que em muitos países seja ilegal demitir uma mulher porque ela engravidou, mais de 50 mil trabalhadoras perdem o emprego todos os anos em razão da discriminação maternal no Reino Unido.”
Na avaliação da pesquisadora, aquele movimento massivo de radicalização de meninos e jovens adultos é catapultado pelas redes sociais.
“Não estamos diante de uma geração inerentemente misógina. Trata-se na verdade de uma geração de jovens que acessa determinados sites, aplicativos e outros ambientes online com algoritmos incrivelmente poderosos e treinados para servir conteúdos cada vez mais extremistas”, aponta ela.
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Mas como isso acontece na prática?
Bates convida que as pessoas criem um perfil no TikTok com informações que descrevem um menino de 14 anos.
“Se você tiver uma conta com esse perfil, em menos de 30 minutos vai receber sugestões de vídeos com conteúdo extremamente misógino diretamente na sua tela”, calcula a pesquisadora.
“Ninguém precisa procurar por isso, esse material chega até você.”
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Ela lembra que sempre existiram reações conservadoras à luta pelo direito das mulheres e por justiça social.
“Mas agora essa resposta é turbinada pelos algoritmos”, diz a autora.
Na visão de Bates, as empresas que controlam as grandes plataformas de mídia social costumam tomar duas atitudes dentro desse debate.
“Primeiro, eles chamam atenção para as regulamentações internas, que eles próprios costumam desrespeitar com frequência. Em segundo lugar, as companhias sempre dizem que é muito difícil lidar com essa questão, já que milhões de pessoas ao redor do mundo estão produzindo conteúdo massivo, que se prolifera em alta velocidade”, relata ela.
“Imagina se um conglomerado multinacional que produz alimentos dissesse algo parecido? E se uma empresa desse setor declarasse abertamente que, bem, milhões de pessoas ao redor do mundo ingerem nossa comida. Então, como nosso negócio é muito grande, temos muitas fábricas, não podemos ser responsabilizados se algumas pessoas morrerem em razão de uma infecção bacteriana.”
Pesquisadora diz que basta 30 minutos no TikTok para que um menino de 14 anos tenha acesso a vídeos com conteúdo misógino
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O que as empresas dizem?
Questionado pela produção do podcast Radical with Amol Rajan, o TikTok declarou que “as contas de adolescentes possuem como padrão as mais altas configurações de segurança e privacidade”.
Também informou que 98% do conteúdo que pode causar algum dano é removido antes de qualquer usuário levantar alguma reclamação e que a empresa limita o acesso a materiais inapropriados para algumas faixas etárias.
Por fim, o TikTok questionou a metodologia do estudo citado por Bates — de que um menino de 14 anos tem acesso a conteúdos misóginos após usar o aplicativo por 30 minutos — e reforçou que “não tolera qualquer discurso de ódio”.
Já a Meta, grupo que controla Facebook, Instagram e WhatsApp, declarou que “esse tipo de comportamento [que dissemina ódio às mulheres] não tem lugar nas plataformas” e que “realiza continuamente melhorias para lidar com conteúdos potencialmente danosos”.
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“A Meta possui ao redor de 40 mil funcionários que trabalham com segurança em todo o mundo e investiu mais de US$ 30 bilhões [R$ 164 bi] nessa área ao longo da última década.”
Para Bates, a postura das gigantes de tecnologia é “cômica”.
“Trabalho com dezenas de milhares de adolescentes todos os anos. Outro dia, um menino, que provavelmente está com 12 anos, levantou a mão e me questionou sobre as mulheres que mentem a respeito de casos de estupro e arruínam a vida de homens. Segundo ele, casos como esse acontecem todos os dias.”
“Perguntei onde ele tinha ouvido essa informação. E a resposta foi o TikTok.”
“Já nas plataformas da Meta, um estudo recente mostrou que os usuários são expostos a conteúdos com comportamentos abusivos a cada sete minutos, em média.”
Na visão da escritora, essas empresas deveriam investir mais em uma moderação altamente treinada e com suporte adequado.
“Elas têm dinheiro para isso e não podem encarar essa necessidade como um favor que estão fazendo a nós, pelo fato de usarmos os produtos delas supostamente de graça.”
Para Bates, é necessário aumentar a regulamentação das redes sociais para proteger os mais jovens
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Como a IA influencia nesse cenário?
Na avaliação de Bates, se as redes sociais promovem um “sexismo turbinado”, nós estamos prestes a ver o problema ganhar uma escala “um milhão de vezes maior” conforme a IA ganha mais espaço nas nossas vidas.
Segundo ela, já é possível ver as implicações práticas disso nos dias de hoje.
“Se você se candidatar a uma vaga de emprego, por exemplo. Sabemos que 40% das empresas do Reino Unido usam algum tipo de IA no processo de recrutamento. E algumas dessas ferramentas são comprovadamente discriminatórias contra mulheres”, diz ela.
Segundo ela, algo parecido também acontece quando a IA é aplicada em setores como crédito e financiamento ou na prestação de serviços de saúde.
“Não é que a IA seja abertamente preconceituosa ou sexista, mas essa discriminação está na base da configuração dela.”
A pesquisadora também chama atenção para os aplicativos capazes de “tirar a roupa” de qualquer pessoa, alguns deles disponíveis abertamente na AppStore (para dispositivos da Apple) e no Google Play (para aparelhos com sistema operacional Android).
“Basta você escolher uma foto de qualquer menina ou mulher disponível em sites ou plataformas de redes sociais que, em poucos minutos, o sistema produz uma imagem altamente realista daquela pessoa nua”, descreve ela.
“As consequências desse tipo de tecnologia são muito palpáveis no mundo real. Estamos voltando à velha discussão de a quem pertence o corpo feminino. A ideia de que você pode escolher qualquer mulher do mundo e transformá-la em seu brinquedo pornográfico cria um senso de posse”, analisa Bates.
A autora entende que o uso dessas ferramentas de IA vai transbordar e gerar cada vez mais casos de perseguição e abusos no mundo real.
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“Um dos casos que cito no meu livro mais recente é o de um grupo de meninas na Espanha, algumas delas com 11 anos, que tiveram suas imagens usadas para criar vídeos pornográficos hiper-realistas. Esses conteúdos se espalharam feito fogo pela cidade onde moram. Algumas não conseguiam mais sair de casa, não queriam mais ir à escola e tiveram sérios problemas de saúde mental.”
“A investigação da polícia mostrou que os criadores desses materiais não formavam uma gangue criminosa organizada ou agentes da dark web. Os autores eram meninos que frequentavam a mesma escola”, relata Bates.
A escritora conta que, nas palestras que costuma fazer nas escolas, ela sempre observa que os educadores não têm noção de como a IA já está sendo usada pelos adolescentes para criar vídeos pornográficos falsos com as alunas ou até mesmo com as professoras.
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É possível desatar esse nó?
Bates acrescenta que há uma verdadeira crise de saúde mental entre os mais jovens, principalmente entre adolescentes do sexo masculino.
“Em alguns lugares do mundo, o suicídio se tornou a principal causa de morte entre menores de 15 anos”, constata ela.
Para a pesquisadora, isso faz parte do mesmo fenômeno que ameaça a segurança e o bem-estar de meninas e mulheres.
Para ela, há uma forma de masculinidade que reprime os homens e os impede de buscar ajuda, falar sobre sentimentos ou mostrar qualquer tipo de vulnerabilidade.
“Esse é o mesmo sistema que cria estereótipos de que as meninas são movidas pelos hormônios ou são histéricas”, compara Bates.
“Há ainda um movimento que acusa o feminismo de ter alienado os meninos. Mas eles estão se sentindo abandonados e incapazes pela ação de influenciadores que justamente reforçam esse tipo masculinidade.”
“E eles encontram esses conteúdos porque, ao criar uma conta de TikTok, recebem esses conteúdos extremistas em 30 minutos de uso da plataforma. Então precisamos considerar o papel das empresas de mídias sociais nesse processo de radicalização”, opina ela.
Mas será possível desatar esse nó? Como garantir um futuro mais saudável para todos?
Bates propõe a criação de novos modelos de masculinidade. Segundo a pesquisadora, eles já existem em muitos homens atuais, como grandes nomes do esporte, das artes e de outras áreas.
“A questão é que esses homens magníficos não são promovidos pelos algoritmos das redes sociais da mesma maneira”, lamenta ela.
Mas esse exemplo também pode estar mais perto de casa. “Pais, tios, professores, treinadores esportivos, líderes comunitários, enfim, todas essas figuras têm um enorme impacto nos meninos”, acrescenta Bates.
“Há uma enorme oportunidade para que esses homens, que em sua maioria querem coisas boas, tenham um espaço na educação dos mais jovens e deem todo o suporte nesse processo”, propõe ela.
A escritora acredita que o caminho passa diretamente pela comunicação aberta e franca.
“É preciso estabelecer conversas com as crianças, mesmo as mais novas. Não podemos estigmatizar ou ficar em silêncio num mundo onde a pornografia online mostra abertamente mulheres sendo estupradas”, diz ela.
“As crianças precisam saber o que significa ter relações sociais e sexuais saudáveis.”
Bates também observa que, muitas vezes, os pais se deparam com o dilema de dar ou não um smartphone para os filhos.
“É uma decisão impossível de tomar. De um lado, manter a criança longe do celular evita que ela tenha acesso a todos os perigos do mundo online. Do outro, ela não vai poder desenvolver as habilidades digitais que são vitais para viver hoje”, pondera ela.
“Mas o que ninguém fala é que existe uma terceira possibilidade aqui: a regulamentação das empresas de tecnologia, de modo que os mais jovens tenham ferramentas digitais realmente seguras.”
Embora veja o cenário com bastante pessimismo, com muitos perigos e ameaças, Bates enxerga algum espaço para esperança.
“Há acadêmicos incríveis que trabalham duro nesse ambiente. Há a construção de um movimento, de uma voz coletiva, que está cada vez mais preparado para denunciar os sexismos diários e modificar essa realidade”, comemora ela.
Passados alguns anos desde aquela semana terrível que despertou Bates para o feminismo, ela continua a refletir sobre tudo o que viveu naqueles dias.
“Sempre penso no homem que colocou a mão entre minhas pernas, mas não exatamente pelo que ele fez comigo. Sempre imagino o próximo ônibus que ele pegou e o que pode ter acontecido com a outra jovem mulher que resolveu sentar-se ao lado dele”, diz ela.
“É por isso que conversas sobre esse assunto precisam envolver todo mundo. Não é apenas sobre as vítimas ou os perpetradores.”
“Gostemos ou não, seremos cidadãos digitais no mundo da IA. E será ainda mais importante que as pessoas reconheçam a importância de falar sobre esse assunto, mesmo que elas não sejam diretamente afetadas por ele”, conclui Bates.
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