‘Poderia ter ido mais longe x ultrapassou todos os limites’: a luta de Francisco para reformar a Igreja
Quando o Papa Francisco foi eleito em 2013, a Igreja Católica enfrentava uma crise de confiança, marcada por escândalos de abusos sexuais e corrupção. Bandeira do Brasil é jogada para o Papa Francisco durante a audiência geral desta quarta-feira (22) no Vaticano
L’Osservatore Romano/Pool Photo via AP
“Francisco foi eleito para reformar uma Igreja em crise, exposta a desconfianças, julgamentos”. A afirmação é de João Décio Passos, doutor em Ciências Sociais, livre-docente em Teologia na PUC-SP e autor de “A igreja em saída e a casa comum: Francisco e os desafios da renovação”.
Quando o Papa Francisco foi eleito em 2013, a Igreja Católica enfrentava uma crise de confiança, marcada por escândalos de abusos sexuais e corrupção. Francisco foi escolhido com a missão de reformar a Igreja, trazendo uma nova perspectiva e enfrentando de frente os problemas que a instituição vinha ocultando por décadas.
“A renúncia de Bento XVI expôs a fragilidade de um modelo estável da Igreja Católica, mostrando que não era bem assim — tinha escândalo de pedofilia, corrupção, abusos. A saída de Bento abriu uma rachadura interna na instituição, que exigia politicamente uma figura externa capaz de restaurar a imagem da Igreja”, completa Passos.
E, até onde foi possível chegar, Francisco chegou, na visão do livre-docente em Teologia. “Para os reformadores, ele poderia ter ido mais longe; para os conservadores, ele ultrapassou todos os limites imagináveis”.
Combate aos abusos sexuais
Os escândalos de abusos sexuais foram um dos maiores desafios enfrentados pelo Papa Francisco. Desde o início, ele adotou uma política de “tolerância zero” e implementou medidas rigorosas para responsabilizar a hierarquia da Igreja.
Em 2019, assinou o decreto papal “Vos estis lux mundi” (Vós sois a luz do mundo), que tornou obrigatório que padres e religiosos denunciassem às autoridades eclesiásticas suspeitas de casos de abusos sexuais. Em 2021, ele mudou a legislação do Vaticano para tipificar e criminalizar explicitamente o abuso sexual de adultos e responsabilizar casos de omissão e negligência.
Em 2023, ampliou o decreto de 2019, tornando definitivas as medidas que obrigam padres a relatarem qualquer suspeita de abuso e responsabilizando bispos diretamente por acobertarem casos.
Em setembro de 2024, Francisco voltou a se manifestar sobre casos de abuso sexual contra menores, afirmando que “a Igreja deve ter vergonha e pedir perdão. Tentar resolver esta situação com humildade cristã e fazer todo o possível para que não volte a acontecer”.
Francisco também reforçou que todos os crimes devem ser respondidos civilmente, rompendo com a antiga prática de tratar esses casos apenas internamente.
João Décio Passos destaca que o papa solucionou do ponto de vista disciplinar, moral e jurídico o que poderia solucionar.
“Ele fez uma reforma geral na Igreja Católica, não apenas uma renovação disciplinar. Ele enrijeceu as regras de pedofilia e expôs a velha cultura católica de esconder, ocultar, apaziguar os escândalos. Ele não teve receio de enfrentar de frente cardeais, bispos, padres”.
Nomeação de cardeais das “periferias”
Outro aspecto notável do papado de Francisco é sua ênfase na inclusão e diversidade dentro da hierarquia da Igreja. Ele descentralizou a nomeação de cardeais, escolhendo muitos de regiões periféricas e menos representadas, como América Latina, Ásia e África.
Em 2016, ordenou cardeais do Lesoto, Papua-Nova Guiné, Ilhas Maurício, Bangladesh e Malásia, países que tiveram pela primeira vez alguém em tal posto. Essa estratégia não apenas diversificou o colégio de cardeais, mas também preparou o terreno para um futuro conclave mais plural e menos previsível.
“Hoje temos um quadro de cardeais muito plural e na hora de eleger o próximo papa, não haverá uma unanimidade previamente construída”, observa Passos. “Haverá uma força conservadora, não tenho dúvidas, mas acho que não serão maioria. Os conservadores de plantão não conseguirão articular uma frente conservadora no conclave”.
Passos também não acredita que o conclave elegerá um “Francisco II”. Para ele, o próximo papa pode ser alguém mais moderado.
Francisco nomeou mais de 160 cardeais ao longo de seu papado. No total, o colégio dos cardeais tem 252 clérigos. Destes, 138 são elegíveis para votar no próximo conclave — reunião cujo objetivo é escolher um novo Papa.
O Brasil tem oito cardeais no colégio cardinalício – cinco escolhidos por Francisco. Sete estão aptos a votar.
Posição sobre o aborto
A posição do Papa Francisco sobre o aborto sempre foi clara e firme. Ele considera o aborto um crime e frequentemente comparou a prática a “contratar um sicário para resolver um problema”. No entanto, Francisco também reconheceu a necessidade de apoiar as mulheres em situações difíceis, enfatizando que a Igreja deve acompanhar e acolher essas mulheres com compaixão.
“Não se deve esperar que a Igreja altere sua posição sobre esta questão. Este não é um assunto sujeito a supostas reformas ou ‘modernizações’. Não é opção progressista pretender resolver os problemas, eliminando uma vida humana. Mas é verdade também que temos feito pouco para acompanhar adequadamente as mulheres que estão em situações muito duras”, afirmou Francisco em diversas ocasiões.